Um sonho...
Das janelas da casa podia-se ver o imenso jardim com suas plantas exóticas, com suas flores, com a grama verde serpenteando a calçada que levava à porta. Letícia sentia-se imensamente solitária naquela tarde, seu olhar espalhava-se pelas redondezas procurando um sentido para seu dia.
Por mais que não quisesse, vez ou outra mergulhava na sensação melancólica de estar em um lugar que não lhe pertencia. Entretanto, não conseguia lembrar-se quando e nem como começou a sentir assim. Tinha tudo que uma mulher pudera imaginar, pensava consigo. Um marido que lhe dava conforto, que não permitia que tivesse qualquer aborrecimento. Tinha uma casa, cujos empregados satisfaziam todas as suas vontades, um motorista que a levava para onde quisesse, uma vida social relativamente agitada, com amigos que se ocupavam de encontros e outras festividades. Mas, em seu coração, havia um estranho sentimento de vazio e...solidão.
Com certeza, pensava consigo, seu marido tinha inúmeros afazeres no trabalho que o impediam de estar mais próximo. Sabia do zelo que ele tinha por ela, mas não conseguia compreender porque, em inúmeros momentos, ele selecionava o roteiro de seus passeios e não raras vezes o viu ordenar condutas para o motorista. Ah, repetia consigo, "excesso de zelo pelo muito do amor que me tem"!
A mãe de seu esposo, uma figura constante na vida de ambos, falava muito e parecia tão austera com os empregados e com as pessoas mais humildes que, de algo forma, isso a incomodava.
- Por que ser tão rígida diante das dificuldades do outro? Por que ser tão preconceituosa a ponto de enxotar do portão os pedintes que lhe pediam ajuda? Pensava Letícia.
E foi assim, em uma tarde de inverno, uma mulher de olhos negros e maltrapilha, aproximou-se do portão da mansão onde habitavam. Ela pedia algo para comer, para si e para os dois filhos pequenos que a acompanhavam. Letícia e a sogra caminhavam pelo jardim. A sogra, Eulália, discorria sobre as jóias que vira em uma joalheria e do quanto desejaria tê-las, pois afinal ouro e pedrarias eram a sua maior fraqueza. Segundo, ela convenceria o filho a comprá-las...pois este lhe fazia todas as vontades. Letícia, ouvia e estranhava tamanho empenho por mais uma joia dentre as tantas que já possuía. E ambas, ao notarem a presença da mulher nos imensos portões de ferro do jardim, pararam para ouvi-la.
E a mulher dizia:
- Misericórdia senhora...eu e meus filhos passamos fome ...acaso terias algo para comer??
Antes que Letícia pudesse falar, Eulália, de forma altiva gritou:
- Afaste-se de meu portão...acaso pensas que esta é uma casa para mendigos? Vai embora daqui, não percebe que estás incomodando?! Anda, vai embora e leva tuas crias...
A mulher, olhou-a em profundidade e do fundo de seus olhos negros
deixou cair uma lágrima. As crianças que a acompanhavam, um menino e uma menina por volta de dois ou três anos, agarraram-se à saia maltrapilha da mãe com uma expressão aterrorizada.
Eulália, não satisfeita exclamou:
- Quem não pode viver, que morra!
Letícia, por instantes, ao ouvir esta frase sentiu uma vertigem e apoiou-se no tronco de uma das palmeiras que circundavam o jardim. A mulher, de olhos marejados, segurou seus filhos e disse:
- Dinheiro, fama e riqueza são transitórios nessa vida...e do lugar de onde viemos e para onde vamos nada disso vamos levar...Pensa sobre isso quando chegar a hora da sua morte!
Eulália corou de raiva e gritou mais alto:
- Saia daqui sua Cigana...acaso estas a me rogar uma praga? Vai embora antes que eu mande prender-te...você e essas crias do inferno...
A mulher olhou-a uma vez mais nos olhos e foi embora. Letícia sentia-se mal. Eulália, ao perceber a inquietude da nora, comentou:
- Não me diga que tens pena de tão indigente criatura...Você é mesma uma moloide, igual ao meu falecido marido...Qualquer um te engana, não vê que ela quer apenas nos roubar? Essas pessoas não trabalham porque não querem.. pergunte a ela se queria um emprego e ela te diria que não...Ora, deixe de fricotes...venha, vamos entrar...bem que o Antônio me disse que você tinha esses chiliques.
E conduzida pela sogra, Letícia entrou. A lembrança daquela tarde veio à tona na memória de Letícia, e ela simplesmente não entendia porque não tomara nenhuma atitude diante da arrogância e prepotência da sogra...E ficou a pensar no que a mulher que lhes pedira ajuda falara:
- "do lugar de onde viemos e para onde iremos não vamos levar nada"...
Letícia olhou ao redor e ficou se perguntando se ao morrer, as jóias que ganhava do marido a cada comemoração familiar caberiam no caixão e a seguiriam na cova...Com certeza não! Não só as jóias não caberiam, como também não caberia as pratarias, os títulos, os diplomas pendurados na parede, as roupas e todo o luxo que a cercava. Definitivamente não.
Ao constar a veracidade das palavras da mendiga, Letícia sentiu uma vontade imensa de sair daquela casa, dar um passeio, conhecer outros lugares. Lembrou que o marido ainda demoraria para chegar e que sua sogra estava muito ocupada organizando a mala para uma viagem que faria. Então, pensou:
- Vou sair...
Pediu ao motorista que tirasse o carro e a levasse para passear. O motorista, relutante ponderou:
- Mas senhora, o Dr. Antonio, não quer que a senhora saia sozinha. Ele teme que a senhora se perca.
- Por favor Rafael, como vou me perder se você estará comigo? Preciso sair, estou abafada.
- Mas para onde vamos? Pode ser o jardim da cidade?
- Não...é para lá que vou sempre. Vamos, entre no carro, decidimos o trajeto no caminho...
- Mas senhora, o patrão não vai gostar...
Letícia foi categórica:
- Deixa que com ele eu me entendo depois...e talvez voltemos antes dele.
Embora ela tenha sido incisiva com o motorista, concordava consigo mesma que nem sempre encontrava um canal de diálogo apropriado com o marido. Ele, aparentemente zeloso e apaixonado, por vezes parecida distante, desinteressado...Letícia lembrava-se das várias vezes em que queria contar-lhe coisas pequenas, descobertas feitas no jardim, nos passeios ou nos muitos livros que lia e ele, apenas exclamava: "Humm" e volta e meia mudava de assunto, quando ela estava no auge de suas histórias. Mas naquele dia, estava determinada. Sairia de casa e depois tentaria entender-se com o marido.
O motorista, ainda relutante, tirou o carro e ela embarcou...Começaram a rodar pelas ruas da cidade onde moravam. Inicialmente voltearam o bairro, com suas casa imponentes, seus jardins bem cuidados, até que Letícia pediu que mudasse de rumo. O motorista questionou:
- Para onde vamos?
- Não sei..vá por ali...Ele viu uma esquina e dobrou a esquerda e continuou a esmo. Ele começava a se inquietar porque estavam indo em direção aos bairros periféricos da cidade...Entretanto, cedeu aos caprichos da patroa... Entraram e saíram de ruas com casas modestas, algumas pintadas com cores alegres e outras mal cuidadas... até que Letícia, pediu que parassem ao adentrar uma das ruas...O motorista perguntou:
- Onde?
Ela apontou um casa pequena, simples, com um pequeno jardim com flores na frente do qual havia algumas crianças brincando...Parecia que naquele instante estava acontecendo uma festa. As crianças sorriam e corriam nas proximidades do portão e a casa parecia estar cheia.
O motorista ficou inquieto e perguntou:
- O que há senhora?
Letícia não sabia responder. Pediu que estacionasse o carro um pouco mais adiante da casa e saltou. O motorista pediu cuidado, aquela era uma área distante e não se sabia o que podia acontecer. Tentou impedi-la, mas ela não se rendeu a ele.
Letícia saiu do carro. Aproximou-se lentamente da casa na qual havia a festa...e à medida em que foi se aproximando constatou o ar de surpresa estampada no rosto de algumas crianças e adultos...Alguns cochichavam e ela, abriu o pequeno portão do jardim e caminhou em direção à garagem que dava acesso à porta de uma cozinha. Uma menina, de cabelos castanhos e olhos escuros de cerca de uns seis anos, segurou-a pela mão e sorriu, exclamando:
- Eu sabia que você voltaria.
Letícia olhou-a com carinho e uma vontade de abraçá-la tomou conta de seu corpo. Apertou a mão pequenina e olhou em direção à porta da cozinha. Lá, parado com uma menina de trê anos no colo, um pano de prato nos ombros, um homem a contemplava do fundo de seus olhos azuis...Entre surpreso e assustado, o homem de quase um metro e oitenta, de calça jeans e camiseta a contemplava. Letícia, ao encontrar o olhar do jovem, sorriu e chorou...e lembrou-se...
Lembrou-se do acidente que sofrera...da dor...da solidão que sentira presa às ferragens e depois de como tudo ficou escuro, frio...até que acordou na mansão ao lado de Antonio...
E foi ali que ela descobriu-se presa nas tramas de Antonio, que se aproveitou de sua amnésia, que a desposou, que a cercou de mimos e que a controlou nos últimos tempos afastando-a do grande amor de sua vida...André e de suas duas filhas: a pequena Larissa no colo do pai e Eleonora a mais velha...E ela igualmente lembrou-se do amor que os unia, das noites apaixonadas um na companhia do outro e das filhas...Letícia, finalmente lembrou-se quem realmente era e descobriu o seu lugar...a sua história...
E assim descobriu que tudo o que vivera nos últimos anos tinha sido um sonho...um sonho ruim...E como foi bom acordar...e viver, e amar...
Ana Izabel JS
Enviado por Ana Izabel JS em 25/01/2014
Alterado em 25/01/2014