Carta de Verão
Querido Amigo,
Como tem passado nestes dias acalorados de Verão? É só o começo de uma estação que nos faz suar, que nos faz buscar o ar, o mar...Adoro o Verão. Nele posso sair à vontade, caminhar sem temer o frio que me congela os ossos e a alma...e hoje vi o mar. Lembro-me de uma época em que o mar era meu vizinho. Eu e ele tínhamos uma relação próxima, amistosa e apaixonante. Meus olhos divagavam junto às ondas que quebravam junto ao muro da casa e meu olhar voava com as gaivotas por entre as nuvens. E foi, ao som das marolas, que quebravam na areia que escrevi muito nos dez anos em que morei naquela casa. Foram anos de uma profícua inspiração. Em frente ao mar tracei rumos, fiz planos, me desentendi com alguém muito querido, briguei com um amigo, abracei inesperadamente minha melhor amiga e ao som das ondas aprendi a dedilhar o piano e a ouvir o som do meu coração.
E o mar emoldurava o cenário no qual aquela casa, antiga, de estilo colonial, abrigou meu corpo, minha alma e nela igualmente deixei os fragmentos dos sonhos que me acompanhavam. Você se lembra de como a casa era? Você se lembra do mar? Acredito que não se recorde do quanto aquela casa lembrava uma fazenda antiga, com portas e janelas altas, com espaços abertos e um quintal que se estendia até o mar. E talvez não se recorde o quanto a casa e o mar voltaram insistentemente aos meus sonhos...Às vezes, acho que nossa alma elege para si um templo, um refúgio para as horas incertas trazidas pelo destino. Acredito que o meu refúgio sempre foi voltar em sonhos até àquele lugar. Lembro do sorriso de minha mãe quando começamos a morar lá. Ela era apaixonada pelo mar, embora o temesse de uma forma inexplicável. E lembro, igualmente, do dissabor e da tristeza dela quando precisamos nos mudar daquele lugar. Ela, interiormente sabia que ao afastar-se do mar acabaria morrendo. E isso aconteceu. O mar a alimentava e, sensível como era, não suportou exilar-se de um companheiro tão surpreendente. Penso que o afastamento do que amamos pode nos mergulhar nesse tipo de tristeza que nada pode conter.
E hoje, ao olhar o mar sob o céu nublado anunciando uma tempestade de Verão após sair do cinema, fiquei pensando há quanto tempo não paro para contemplá-lo. Moro em uma ilha. E pela definição, esta se configura como um pedaço de terra cercado de água por todos os lados...E como a ilha onde moro é grande...muito grande. No entanto, tenho parado pouco para contemplar o mar, apenas o vejo durante o trajeto de casa ao trabalho, mas não tenho mantido com ele o mesmo padrão de relacionamento. Não tenho lhe contado os meus segredos. Não tenho conversado com ele sobre tudo que me aconteceu quando dele me separei. Não lhe tenho segredado coisas do coração. E hoje, ao me perder no movimento das ondas durante o trajeto, pude observar uma pedra, cercado de água por todos os lados...Percebi o quanto a água batia na pedra e fiquei imaginando que depois de um tempo haverá na pedra um outro desenho...Afinal, grandes esculturas nascem da insistência da natureza...Talvez sejamos assim, grandes rochas esculpidas pela força da água que o destino nos traz.
E desse pensamento surgiu outro...o da sensação do quanto a minha própria vida mudou ao longo destes anos. Os acertos, os desacertos, os encontros, os desencontros, as tolas caraminholas que guardei por anos, as verdades e as mentiras...E daí fiquei pensando na história de cada um dos personagens que transitaram pela minha vida e foi aí que a saudade me pegou e me trouxe aqui, até você...para dizer que embora a vida mude sempre...algo nunca vai mudar...o carinho e o amor que tenho por você.
Além disso, esse momento de introspecção que desfiou lembranças de tempos idos, igualmente devolveu-me a sensação de que há algo muito bom em tudo o que eu vivi, em tudo o que eu aprendi, em tudo o que eu aprendo. E de como isso me faz sentir viva e capaz de ir adiante, com a mesma alegria da adolescente que se tornou namorada do mar e das estrelas do anoitecer...Por tudo isso, sei que preciso continuar, porque meus olhos ainda querem ver o mar...e quem sabe um dia te encontrar...
Ana Izabel JS
Enviado por Ana Izabel JS em 03/01/2014